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Profissionais com deficiência falam sobre a importância da representatividade na TV

Em "Travessia" e "Todas as Flores", atores PCDs fazem história na teledramaturgia.


Michele Vaz Pradella, para o Diário Gaúcho


Segundo dados do IBGE de 2019, 8,4% dos brasileiros têm algum tipo de deficiência – o que representa 17,3 milhões de pessoas. Entretanto, a representatividade dessa parcela da população no audiovisual sempre foi escassa. Na teledramaturgia, o mais comum é o cripface – quando atores e atrizes sem deficiência vivem personagens PCDs. Foi o caso de Marcos Frota e Bruna Marquezine em América (2005), interpretando os cegos Jatobá e Maria Flor. Em Viver a Vida (2009), foi a vez de Alinne Moraes dar vida a Luciana, uma modelo que ficou tetraplégica após um grave acidente.


As pessoas com deficiência são raras na telinha. Será que é por não existirem atores cegos, surdos, cadeirantes ou com outras limitações? Pelo contrário, o que faltam mesmo são as oportunidades. Felizmente, de alguns anos para cá, essa realidade vem mudando.


Atuação sobre rodas


Em Travessia, a atriz Tabata Contri é a advogada Juliana, personagem de destaque na trama, que trabalha, namora Vandami (Raul Gazolla), sai com os amigos, se diverte e dança. A autora Gloria Perez rompe com o estereótipo da pessoa com deficiência como “coitadinha” ou “exemplo de superação”. Sem deixar de lado o alerta a situações em que barreiras físicas ou preconceitos surgem.


Em uma das cenas mais marcantes, Juliana e Vandami passeavam pela rua, até que encontraram um conhecido do personal trainer. Ao apresentar a namorada, Vandami foi surpreendido por um “parabéns” do homem. A advogada levou a situação na brincadeira, e respondeu:


– Parabéns pra mim, que aguento ele!


A cena é apenas um entre tantos exemplos de capacitismo, já que o amigo de Vandami parece ter considerado uma “boa ação” ele estar namorando uma mulher cadeirante.


A primeira aparição de Tabata em novelas foi em Viver a Vida, uma cena rápida e um breve diálogo com Luciana (Alinne Moraes). Era assim que PCDs costumavam aparecer nas novelas: em participações curtas.


Papel de destaque


Agora, na novela das nove, a atriz faz história como a primeira cadeirante a ter papel de destaque na teledramaturgia da Globo. Tabata destaca a importância de haver uma atriz PCD no horário nobre:


– Isso faz com que muitas pessoas com deficiência se permitam não apenas sonhar, mas realizar seus sonhos. Muita gente costuma dizer o que a gente não pode fazer, simplesmente por nunca terem visto alguém com deficiência fazendo.


A atriz conta que a receptividade do público tem sido a melhor possível:


– Tenho recebido muitos abraços e pedidos de fotos nas ruas. Outro dia, no aeroporto, uma moça até pediu para eu ligar para uma amiga dela que tinha ficado cadeirante há pouco tempo, acredita? Isso não tem preço!


Tabata revela que houve preparação especial da equipe, da rotina de gravações e infraestrutura dos estúdios. Tudo isso foi acompanhado pelo diretor Mauro Mendonça Filho.


– Ele tem uma filha cadeirante e já sabe que o processo é diferente, respeitou isso – lembra a atriz.


Representatividade, só que não


A presença de personagens com deficiência em novelas não é novidade. O problema é que, durante muitos anos, não eram PCDs em cena. É fácil lembrar de tipos com deficiência intelectual, como os inesquecíveis Tonho da Lua (Marcos Frota), em Mulheres de Areia (1993), e Jamanta (Cacá Carvalho), em Torre de Babel (1998) e Belíssima (2005).


O primeiro deficiente auditivo da ficção, Abel, foi interpretado por Tony Ramos em Sol de Verão (1982).

Quando se pensa em personagens cadeirantes, é preciso problematizar uma questão: os “milagres” que costumam acontecer nas tramas. Em Laços de Família (2000), Edu (Reynaldo Gianecchini) sofreu uma queda do cavalo e ficou paraplégico. Depois de muita fisioterapia, logo apareceu caminhando normalmente. O mesmo ocorreu com Pedro (Eriberto Leão), em Insensato Coração (2011), vítima de um acidente aéreo, mas que recuperou os movimentos das pernas. Casos como esse induzem o telespectador a acreditar que só a recuperação dos movimentos fará o personagem ser feliz novamente. A consultora em capacitismo Patrícia Lorete comenta o desserviço desse tipo de história:

– É a reprodução de uma das muitas ideias capacitistas que ainda existem. A ideia de que usar cadeira de rodas, órteses ou próteses é algo ruim e que a pessoa andar de forma normativa (com os pés) é um “presente”, uma dádiva, que usar cadeira de rodas é um castigo.



Um dos poucos casos da ficção em que não houve melhora milagrosa foi o de Luciana em Viver a Vida. Ela teve um final feliz, casou-se com Miguel (Mateus Solano), deu à luz gêmeos e voltou a trabalhar como modelo. Tudo isso sem sair da cadeira de rodas, mostrando que a felicidade não estava ligada à recuperação dos movimentos.


– Minha ideia é que Luciana não volte a andar e, sim, que reaprenda a viver e a ser feliz com essas novas limitações, superando as dificuldades – relatou o autor Manoel Carlos ao jornal Extra à época.



Sucesso no Globoplay, Todas as Flores é um marco não apenas por ser a primeira novela original do streaming – Verdades Secretas 2 conta como continuação da trama de Walcyr Carrasco de 2015. A produção de João Emanuel Carneiro inovou também no que diz respeito à inclusão. Pessoas com deficiência visual estão presentes diante e atrás das câmeras.


Cuidados


Os cuidados com inclusão começaram desde as primeiras coletivas de imprensa da trama. Jornalistas e atores convidados foram orientados a se apresentar com audiodescrição, para que todos os presentes, com ou sem deficiência, fossem inseridos naquele momento. A iniciativa se estende aos capítulos da novela, que também contam com o recurso de audiodescrição, além das legendas. Outro projeto derivado de Todas as Flores é o minidocumentário #PraTodosVerem, com histórias reais de pessoas com deficiência visual.



Camila Alves interpreta Gabriela na trama, mas sua participação no projeto começou há cerca de um ano, antes do início das gravações, prestando consultoria à equipe.


– Estou tentando contribuir para que os textos estejam cada vez mais sintonizados com o desenvolvimento das vidas e das pautas das pessoas com deficiência e, principalmente, deficiência visual. Faço sugestões de falas, expressões e ideias. Também estou próxima de alguns atores, participando das construções de seus personagens e dos seus textos – explica.



Adaptações importantes foram feitas nos sets de gravação. No caso de Camila, houve um cuidado especial com seu cão-guia, Astor, que também faz sua estreia como “ator” em cena.


– É importante que as cenas levem em conta o que é possível ou não pra ele fazer e isso tem acontecido. Ele não muda a velocidade de andar porque está gravando. A equipe se adapta ao ritmo dele – conta ela


Multifacetada, Nathalia Santos se define no Instagram como “jornalista, palestrante, cega e mãe”, mas suas atividades vão muito além disso. Em Todas as Flores, atua como assistente de direção. Ela explica como funciona esse trabalho:


– Faço checklist, tenho interface com arte, cenografia, figurino e caracterização. Preparo o set, chego antes, confiro se está tudo certo... Assim, preciso entender de câmera e de tudo que envolve, além de ter bom relacionamento interpessoal com toda a equipe .



A história de Nathalia na Globo começou há 10 anos, no programa Esquenta!, comandado por Regina Casé. Na descontraída atração, ela atuava como comentarista e tinha sempre boas tiradas na ponta da língua.


Hoje em dia, por trás das câmeras, Nathalia faz história como a primeira assistente de direção cega e espera ser um exemplo de que é possível que PCDs ocupem espaços.


– Quero abrir o caminho para que cheguem mais profissionais como eu, que desempenham diversas funções. Tomara que não seja uma “preocupação passageira” no mercado da dramaturgia. Somos profissionais competentes, mas dezenas estão por aí sem desempenhar suas funções, apenas por preconceito – pontua Nathalia.


Além de Camila e Nathalia, a produção conta ainda com os atores Amanda Mittz e Cleber Tolini, a atriz, bailarina e preparadora Moira Braga e o operador de áudio Marcelo Edward.


Novos tempos


A consultora Patrícia acredita que, daqui para frente, não há como retroceder no que diz respeito à visibilidade PCD nas novelas. Segundo ela, a presença de pessoas com deficiência na dramaturgia é um movimento que veio para ficar:


– Acredito que cada vez mais as grandes organizações e produtoras estão tomando consciência da importância e dos benefícios da inclusão e da representatividade. Cada vez mais, o audiovisual brasileiro se dá conta da relevância da visibilidade em relação à causa da pessoa com deficiência. Estão entendendo que o mundo é plural e, sendo assim, todos os corpos devem ser representados.


Com quase 21 mil seguidores em seu perfil no Instagram (@janeladapatty), Patrícia trabalha com a conscientização sobre capacitismo, inclusão e acessibilidade. Tanto que, a convite da Globo, deu uma palestra sobre capacitismo para a equipe de engenheiros e arquitetos da emissora.


Por um futuro inclusivo


Considerada um espelho da sociedade desde seus primórdios, na década de 1950, a telenovela foi se adaptando às mudanças de cada época. Se vivemos em um mundo cada vez mais plural, é necessário que todos os públicos se identifiquem com quem está aparecendo do outro lado da telinha. Por isso, inclusão e acessibilidade são pautas necessárias. Ficção e realidade precisam se adaptar, e isso vai desde obstáculos físicos até preconceitos ainda tão presentes na sociedade. Isso, segundo a consultora Patrícia Morete, é o maior desafio:


– Precisamos da derrubada das barreiras, que impedem nossa participação social em igualdade de condições com as demais pessoas. E a principal barreira a ser derrubada é a barreira atitudinal. Aqueles comportamentos que nos colocam como incapazes e que invalidam, silenciam e inviabilizam nossa existência.


A atriz Tabata Contri ressalta que ainda há um longo caminho a ser percorrido:


– Um mundo ideal é onde a gente se sinta pertencente, onde seja natural a gente circular sem ninguém estranhar, contestar ou se admirar. Simplesmente porque a gente faz parte desse mundo!


Incluir e naturalizar a presença de pessoas com deficiência em todos os espaços, inclusive na teledramaturgia, é um passo importante, diz a atriz Camila Alves:


– Acho que a novela pode contribuir não só sobre as necessidades das pessoas com deficiência, mas sobre nossas potencialidades. Talvez essa fosse a virada importante. Gostaria que a novela conscientizasse o público disso, das potencialidades de nossa existência, sem nos romantizar e sem nos desqualificar.


GLOSSÁRIO


/// Capacitismo: é a ideia de que pessoas com deficiência são inferiores àquelas sem deficiência.


/// Cripface: prática onde personagens com deficiência são interpretados por atores sem deficiência.


/// Órteses: são aparelhos de uso provisório que permitem alinhar, corrigir ou regular uma parte do corpo.


/// Próteses: componentes artificiais para suprir necessidades e funções de indivíduos que passam por amputações, traumas ou deficiências físicas congênitas.


/// Audiodescrição: recurso que torna produções culturais acessíveis para pessoas com deficiência visual por meio da tradução das imagens em palavras.


RELEMBRE


Bem antes de Travessia e Todas as Flores, outras novelas tinham pessoas com deficiência no elenco.


/// Joana Mocarzel – Em Páginas da Vida (2006), interpretou Clarinha, gêmea de Francisco (Gabriel Kaufmann) e filha de Nanda (Fernanda Vasconcellos), que morreu no parto dos filhos. A pequena continuou enxergando o espírito da mãe, a quem chamava de “moça bonita”.



/// Danieli Haloten – Primeira atriz cega em novelas, interpretou Anita em Caras & Bocas (2009). Na trama, a moça era proibida pelo irmão Gabriel (Malvino Salvador) de trabalhar, namorar e ter uma vida normal.

/// Juliana Caldas – Intérprete de Estela em O Outro Lado do Paraíso (2017), era maltratada pela mãe, Sophia (Marieta Severo), que chamava a filha de “monstro” e outros xingamentos.


/// Samanta Quadrado – Na novela Um Lugar ao Sol (2021), a jovem era infantilizada e sofria capacitismo dos próprios pais, Paco (Otávio Müller) e Helena (Claudia Mauro), que não a deixavam morar sozinha e ser independente.



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