“A ecologia sem luta de classes é apenas jardinagem”. Chico Mendes.
Novamente, estive em uma instituição para o abrigamento de pessoas com deficiência. Já visitei dezenas por todo o Brasil.
Sempre sou recebido por gestores e muitos voluntários, simpáticos e dedicados, que invariavelmente lamentam os parcos recursos com que são mantidas essas entidades, sempre por bazares, doações, jantares, eternas campanhas etc.
Normalmente, ignoram o SUS, o SUAS, ou qualquer outra política pública voltadas às pessoas com deficiência. Como se o cuidado a essas pessoas, com deficiências severas, fosse uma tarefa apenas de pessoas voluntárias amorosas, religiosas e dedicadas, e nunca uma obrigação da sociedade e do Estado.
Parece-me que ignoram mesmo as pessoas com deficiência e se preocupam, de verdade, com a gestão de suas instituições.
Visitei muitas delas entre os anos de 2006 e 2007, quando eu e Ana Rita de Paula produzimos o documentário Cenas da Exclusão – Pessoas com Deficiência em Instituições Totais. Você pode assistir neste link: https://vimeo.com/user9421513/cenas-da-exclusao?share=copy
Mais de dez anos depois, estive novamente em uma instituição total, já como secretário adjunto da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência de São Paulo, durante o governo do então prefeito Fernando Haddad.
Fui a essa instituição para uma entrevista para a rádio que possuem. Claro que não fiquei aguardando minha vez na sala de espera, tomando cafezinho em copinho plástico. Sai para conhecer mais a instituição, conversar com pessoas. Quando estava no pátio, enorme e vazio, aproxima-se de mim um rapaz, de aproximadamente 30 anos, numa cadeira de rodas manual, que ele movimentava puxando com um dos pés.
Era um rapaz com paralisia cerebral. Ele ficou olhando para minha cadeira de rodas motorizada e disse: “Que cadeira bacana essa sua”.
Eu respondi que, realmente, era uma cadeira muito boa. Na época, eu tinha uma Invacare Kite, uma cadeira poderosa e muito bonita. Marca americana, montada na Alemanha, feita com peças que vão da Nova Zelândia ao Vietnã.
Ele me disse que também teve uma cadeira motorizada, mas que a direção da instituição não permitia que ele a utilizasse, alegando que, com ela, ele não faria exercícios.
Nunca me esquecerei desse rapaz e do que ele me disse, pois representa exatamente o que é morar em uma instituição total. Talvez, em um de seus aspectos menos dramáticos.
Diferentemente de grande parte das instituições de abrigamento de pessoas com deficiência, essa que visitei agora está numa região quase central da cidade de São Paulo, tanto é que fui andando em minha atual cadeira motorizada, uma Quantum Stretto. Também uma marca americana, fabricada toda nos EUA.
Cheguei meia hora mais cedo do que o agendado. (Abaixo, separadamente, contarei o que me aconteceu nessa meia hora em que passeei lá por perto.)
Ao chegar à instituição, entrando pela lateral - pois a entrada principal não é acessível - encontrei uma moça, uns 30 anos, bonita e simpática, uma das 46 internas dessa instituição. Estava com a mãe, uma das poucas que mantêm relações familiares (a maioria não tem).
Fiquei conversando um pouco com ela enquanto a minha anfitriã não chegava. A moça tinha olhos grandes, curiosos, que não desgrudaram um segundo de mim. Ela não falava, mas me pareceu entender o que eu dizia. Tinha os cabelos tingidos de rosa.
Estava um dia muito bonito, ensolarado.
Minha anfitriã chegou e entramos para a visita.
Logo fomos para a oficina ortopédica. Uma coisa curiosa: ao chegar à oficina de cadeiras de rodas e talas, um rapaz, com um jeito inteligente e curioso, me foi apresentado. Era o técnico da oficina. A voluntária que me acompanhava me contou, cheia de orgulho, que ele, na verdade era auxiliar de limpeza, mas que, graças à sua curiosidade e talento, hoje é o responsável técnico pela oficina. Mas, formalmente, continua sendo auxiliar de limpeza...
Tenho certeza de que esse rapaz “voaria” no campo das tecnologias assistivas, estudando, recebendo o apoio e os estímulos necessários.
Alguns fisioterapeutas com quem conversei, chamam os internos de “abrigados”, mas a voluntária-anfitriã e outros funcionários - cozinheiras e cuidadores - os chamam “crianças”.
Em vários dos quartos – que são pequenos pavilhões, com seis ou oito camas, ou leitos - pude observar bonecas e outros brinquedos.
Mas, não havia nenhuma criança!
A instituição também atende pessoas com deficiência que não estejam internadas ali, filantropicamente. Havia uma menininha, muito linda, de uns cinco anos, com paralisia cerebral, fazendo fisioterapia. Ela andava, era bem esperta e brincalhona. Fiquei me perguntando se não seria melhor ela “apenas” brincar. A fisioterapeuta a segurava para que ela não fugisse dos equipamentos e exercícios.
Conversei, mais pausadamente, com duas fisioterapeutas que atendiam dois jovens – esses, sim, com limitações mais severas, e perguntei o porquê de eles, assim como praticamente todos os moradores, utilizarem talas nos pés e muitos também nas mãos.
Elas me explicaram que esse é um cuidado absolutamente necessário para evitar a deformação desses membros e que esses dispositivos, tanto os dos pés como das mãos, são colocados nos moradores durante 20 horas por dia. Todos os dias!
Perguntei a elas qual seria o problema se esses pés e mãos ficassem deformados e qual era o entendimento de deformação que elas utilizavam. Não souberam me explicar. Se entreolharam, mas acho que ficou uma sementinha na cabeça delas.
Passar a vida com essas talas, deve ser terrível!
Entre todas as pessoas moradoras que vi por lá, apenas uma “tocava” a própria cadeira de rodas. Não havia nenhuma cadeira de rodas motorizada.
Perguntei, também, para uma técnica, sobre o uso de pranchas de comunicação, pois vi uma em cima de uma mesa, que me pareceu bem primária, com desenhos de bichinhos fofinhos e tal. E perguntei sobre pranchas digitais, tablets e outros. As explicações foram tão rasas e sempre reforçando e reiterando a incapacidade das pessoas, que pensei, o que estão fazendo as faculdades de fisioterapia no que tange à formação desses profissionais na atenção às pessoas com deficiências?
Observo, em vários momentos, a limpeza desses ambientes, pois, para o senso comum, isso é um enorme sinal de qualidade no atendimento. Sim, é bom ambientes limpos, mas a condição de vida dessas pessoas é o que verdadeiramente importa.
Continuando, visitamos vários quartos e acomodações, tudo muito limpo e arrumadinho. Camas/berço, algumas com grades bem altas, tipo um metro de altura, ou mais, se transformando em verdadeiras “gaiolas”.
Duas coisas muito chocantes me tocaram muito: uma pessoa encarcerada e “bonitas” celas de vidro.
Quando já estava indo embora, era a hora do almoço. Vários funcionários estavam presentes para dar almoço aos internos. Segundo uma dessas auxiliares, nenhum come sozinho. E muitos deles comem apenas papa. Ano após ano, todos os dias, comendo papa.
Uma parte da instituição, no subsolo, não visitei, não fui convidado. É onde moram as pessoas que utilizam dieta paraenteral.
Sempre que saio de uma visita como essa, fica na minha lembrança uma ou duas pessoas em especial. Em cada uma das instituições que visitei, tenho lembranças de algumas pessoas.
Quando vou embora, sinto como se as tivesse abandonando. Nunca voltei para reencontrar qualquer uma dessas pessoas.
Estive em uma instituição, há muitos anos, no bairro do Tatuapé, aqui na cidade de São Paulo, que era apenas para moças. Senti muito carinho por uma delas, tipo “o santo bateu”. Como se aquele fosse o encontro de uma grande amizade. Nunca a esquecerei. Mas nunca voltei para visitá-la. Faltou-me coragem.
“A luta pela conquista de direitos das pessoas com deficiência, sem a luta pela libertação das pessoas institucionalizadas, é apenas jardinagem”. Tuca Munhoz
Rua Boracea
E agora vou contar sobre o Lino, um cara que conheci antes de chegar à instituição do relato acima.
Como disse, cheguei cedo, fui andando e com receio de atrasar, saí mais cedo do que o necessário.
Ao passear pelo bairro, cheguei à Rua Boracea, onde foi criado, na gestão da prefeita Marta Suplicy, pela então Secretária da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social, Aldaíza Sposati, um grande centro para o atendimento às pessoas em situação de rua, chamado Centro de Acolhida Boracea. Quando inaugurado, o nome era outro, mas também com o nome da rua, Boracea.
Bem, estava por lá e cruzei com outro cara em cadeira de rodas motorizada, o Lino. Uma cadeira motorizada, bem simples, do SUS. Com um monte de sacolas penduradas. Ele me disse que carrega sua casa na cadeira.
O Lino é um cara gordo, preto e com um monte de problemas de saúde, conforme me relatou. Ele mora lá no Boracea, num setor que abriga pessoas em situação de rua, sem condições de saúde para viver na rua.
Ele tinha um apito pendurado no pescoço, mas não quis me falar qual a utilidade do apito.
Um cara sofrido, mas, bem humorado, demos boas risadas no pouco tempo em que ficamos juntos.
Trocamos impressões sobre cadeiras de rodas motorizadas, deficiência, saúde e baterias de cadeiras motorizadas - claro que este é um assunto recorrente entre todos os que usam cadeiras motorizadas.
Deixei meu número de telefone para ele, mas, infelizmente, até agora ele não entrou em contato.
Tuca Munhoz
Em São Paulo, abril de 2024.
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